A primeira cena de “O Mínimo para Viver” (“To the Bone”, em inglês), que foi lançado pela Netflix em julho, adverte: “este filme inclui representações realistas que podem ser perturbadoras”.
O aviso também informa que a obra foi criada em parceria com pessoas que sofreram de distúrbios alimentares, o que não o livrou das críticas de ter romantizado as doenças ou citado os macetes que quem tem os transtornos conhece e usa.
Sobrou também para Lily Collins, que interpreta a protagonista Ellen – uma jovem artista que tenta mais uma vez se tratar da anorexia, desta vez em uma clínica fora do padrão.
A atriz já tinha sofrido de transtornos alimentares e emagreceu tremendamente para fazer o papel – a ponto de estrelar as tais cenas perturbadoras do aviso inicial. Collins se defendeu dizendo que a perda de peso ocorreu com ajuda de nutricionista. Também disse em entrevistas que, apesar de ter sido assustador voltar àquele estado mental, a experiência, no fim, foi terapêutica.
“Tenho pacientes que gostaram, que criticaram, que me perguntam se o relato é correto. O importante é discutir com um especialista o que se viu, refletir sobre se o filme acrescenta algo”, diz Táki Cordás, coordenador do Programa de Transtornos Alimentares do HC da USP.

Relato I

A estudante de medicina Julia Carvalho, 21, de Niterói, Rio de Janeiro, começou a ter transtornos alimentares aos nove anos. Hoje, faz sucesso com o perfil no Instagram @viver.rezar.amar, no qual fala sobre suas dificuldades e vitórias em busca da saúde. Ela faz críticas ao novo filme.

Menstruei aos oito anos e com nove já estava com corpo formado. Me sentia estranha, fora do patamar da minha sala de aula. Não sei nem explicar como, mas comecei a me privar de comida. Nem sabia que isso tinha nome.
Fui ficando mais velha e cada vez mais perfeccionista, o que tem muito a ver com a anorexia. Entrei na paranoia que só podia tirar nota 10 e comecei a descontar na comida. Comia quilos e quilos de comida de uma vez. Comecei a engordar e aprendi que poderia vomitar pra ficar magra. Misturei todos os transtornos.
Tive depressão duas vezes e pensei em me matar, mas sou católica e isso me ajudou. Depois comecei o tratamento médico e o remédio foi essencial. Veio a primeira recaída, mas aprendi a me levantar.
Estava jantando quando vi o filme e perdi a fome. E isso vindo de uma pessoa que está melhor, em tratamento.
O filme retrata bem quem vive com o transtorno, mas acho que dá dicas pra quem está com a cabeça suscetível. Não é prestação de serviço.
Não penso mais em ser magra esquelética, mas pensei: será que eu não era mais bonita naquela época? Tenho certeza que as cenas da atriz muito magra servirão de inspiração para muitas meninas.
Por outro lado, é positivo o fato de trazer o assunto à tona. Quando meus pais descobriram, a primeira coisa que fizeram foi me deixar de castigo. Para eles, eu aprenderia a lição e nunca mais faria isso. Mas é muito maior que você. O filme mostra que ela era uma pessoa doente.
Meu maior presente é a conta no Instagram. Recebo muitas mensagens calorosas, pedidos de ajuda. Quando penso em recair, dizem ‘não desista, você é minha inspiração’. Penso que tenho de ser forte para ajudar os outros.”

Relato II

Para a estudante de psicologia Tainá Perrucci, 23, que começou a ter transtorno alimentar por volta dos 11 anos, o filme faz relato sincero e forte – e é bom que seja assim. “As pessoas precisam saber como é essa realidade.”

Sempre fui magra, mas, depois que menstruei e comecei a encorpar, passei a me preocupar com isso. Hoje reconheço que era medo de crescer. Alguns gramas a mais já me deixavam preocupada. Eu queria ter controle – do meu corpo, do peso, das calorias.
Quando ficava nervosa, a gastrite atacava. Um dia fiquei doente, fui pra escola sem comer e me senti muito bem, mais leve. Fiz o mesmo no dia seguinte. Ia vendo até quando conseguia. De alguma forma, isso me aliviava.
Até que não conseguia mais comer; quando comia, vomitava. Gostava de ver que estava emagrecendo, sempre queria perder mais um quilo. Virou vício. Fazia exercícios até de madrugada.
Ao mesmo tempo que eu não queria parar, estava gritando por ajuda. Queria ficar mal para meus pais verem. Um dia disse que não conseguiria melhorar sozinha, que precisava que me amarrassem para eu voltar a comer.
Fiquei uma semana internada. Eu me contorcia e chorava porque queria vomitar. Com apoio, fui melhorando. Voltei a querer viver. Aos poucos fui introduzindo coisas novas na alimentação até passar a comer de tudo.
O filme tem detalhes que só quem viveu aquilo sabe, me emocionei muito. Quase toda anoréxica tem uma relação meio esquisita com a mãe, quer que a mãe acolha, quer voltar a ser um bebê. Por isso a gente inibe os sinais de crescimento.
Não é romantizado, é bem bruto, sincero. Os métodos para emagrecer citados são bem conhecidos. Ela diz que tem medo de começar a comer e nunca mais parar, e é assim.
A personagem não sabe o que está acontecendo, por que não consegue melhorar. É só comer, mas ao mesmo tempo não é. Achei forte, mas é bom que seja assim. As pessoas têm que saber a realidade.

Folhapress*
Arte: Folhapress

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